Hong Kong realiza eleição limitada a candidatos 'patriotas', em meio a cobranças por responsabilização após incêndio mortal
Em um pleito ofuscado pelo incêndio mortal que vitimou 159 pessoas no fim do mês passado, Hong Kong realiza neste domingo eleições rigidamente controladas para o Conselho Legislativo, órgão que funciona como um parlamento local, e pode formular e modificar leis. Com as candidaturas limitadas apenas a indivíduos considerados "patriotas" pelo governo chinês, a disputa eleitoral ocorre em um momento em que a indignação pública com as falhas de segurança que permitiram o incidente cresce, assim como os pedidos por responsabilidade oficial.
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A votação começou na manhã deste domingo, com o fechamento das urnas previsto para às 23h30 (10h30 em Brasília). O governo intensificou uma campanha na tentativa de aumentar a participação, mas até pouco antes do meio-dia, no horário local, apenas 10,33% dos eleitores haviam comparecido aos centros de votação. Noventa cadeiras estão em disputa no Conselho Legislativo, e dos 161 candidatos, praticamente não há representantes da oposição.
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A China alterou o sistema eleitoral de Hong Kong em 2021, para garantir que apenas "cidadãos patriotas" pudessem concorrer aos cargos legislativos. A mudança se deu no contexto da onda de protestos pró-democracia que tomaram as ruas em 2019. A primeira eleição disputada sob as novas regras ocorreu em 2022, com participação de apenas 30% do eleitorado.
O governo local encara o atual pleito como um teste de legitimidade, em um momento que o incêndio no conjunto residencial aumentou o criticismo sobre a classe política local — os questionamentos incluem a fiscalização à indústria da construção, após a indicação de que materiais de construção abaixo do padrão provavelmente contribuíram para a propagação das chamas. O cancelamento do pleito chegou a ser discutido, mas o governo manteve a disputa e fez tentativas de incentivar a participação.
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No sábado, foi realizada uma mobilização para que servidores públicos comparecessem às urnas, e houve um pedido oficial para que câmaras de comércio incentivassem empresas a motivar funcionários a votar. O governo também promoveu um "Dia da Eleição Divertida", com festa e visitação aberta em repartições públicas.
O chefe do Executivo de Hong Kong, John Lee, pediu que a população fosse votar, após comparecer às urnas neste domingo.
— (Seu) voto representa um voto que impulsiona a reforma e um voto que protege os afetados pelo desastre — declarou a jornalistas.
Sinal de alerta
Em um sinal de como o incêndio se tornou um assunto sensível, as autoridades invocaram leis de segurança nacional para alertar sobre consequências para "elementos anti-China" que, segundo elas, estariam tentando usar o incêndio para causar problemas. Pelo menos três pessoas foram presas pela polícia de segurança nacional desde o desastre.
No sábado, o braço de segurança nacional de Pequim em Hong Kong convocou representantes e jornalistas de alguns veículos de mídia estrangeiros, incluindo The New York Times, para adverti-los sobre a cobertura do desastre.
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Mesmo os milhares de moradores deslocados do condomínio Wang Fuk Court, onde sete torres foram consumidas pelo fogo, tornaram-se alvo da campanha pela eleição. O governo disse na terça-feira que assistentes sociais, cada um designado para auxiliar uma família após o incêndio, também ajudariam os moradores a encontrar suas novas seções eleitorais e direcioná-los ao transporte gratuito — em um movimento que especialistas afirmam ter finalidade de impedir mobilizações contrárias e demonstrar aprovação ao governo.
— Eles poderão anunciar ao mundo que o povo ainda acredita no sistema, acredita no governo e acredita no partido pró-establishment — disse Yam Kai-bong, ex-funcionário do distrito de Tai Po, onde ocorreu o incêndio, que agora vive no Reino Unido. — O governo quer desesperadamente dizer ao público que tudo está normal.
Oposição enfraquecida
Antigamente, as eleições em Hong Kong costumavam ocorrer em meio a disputas barulhentas entre os grupos pró-China e pró-democracia, com a vantagem geralmente recaindo para a oposição, que obtinha até 60% dos votos. Mas, com a lei de segurança nacional que a China impôs à cidade em 2020, diversos legisladores pró-democracia foram presos, enquanto outros renunciaram ou se exilaram.
Apenas 20 das 90 cadeiras em disputa neste domingo, em uma cidade de mais de sete milhões de pessoas, são escolhidas por voto direto. As outras 70 são decididas por um grupo seleto de eleitores compostos por leais a Pequim, e representantes de diferentes setores e profissões. Todos os candidatos foram avaliados previamente quanto ao "grau de patriotismo" à China.
— Eu não vou votar — disse Mary Chan, de 55 anos, moradora de Hong Kong que estava em um memorial perto do local do incêndio no início da semana, onde ela dobrava tsurus de papel como forma de oferecer paz aos mortos. — Qual é o sentido? Ajudá-los [o governo] a fazer pose?
Uma mulher que se identificou pelo sobrenome Poon, cuja casa foi consumida pelas chamas, disse à AFP que os novos legisladores “devem monitorar o governo” e que os responsáveis pela tragédia precisam ser "investigados a fundo". (Com NYT e AFP)