Como a Amazônia é vista em discursos de presidentes brasileiros, desde 1985
Este artigo, publicado na Environmental Politics, analisa os diferentes modos como os presidentes brasileiros, de 1985 até hoje, constroem a Amazônia em seus discursos: às vezes como questão ambiental, outras como desafio de integração econômica, desenvolvimento social ou de soberania nacional.
Segundo a análise, tais escolhas não são casuais, mas dependem de onde o presidente fala (dentro ou fora da região, no Brasil ou em fóruns internacionais) e do contexto político de cada momento (como picos de desmatamento ou crises econômicas).
1A QUAL PERGUNTA A PESQUISA RESPONDE?
Como a Amazônia é construída como “problema” nos discursos dos presidentes brasileiros desde 1985?
2POR QUE ISSO É RELEVANTE?
A Amazônia é frequentemente vista como um problema ambiental. No entanto, ela abrange oito países, abriga mais de 28 milhões de pessoas e concentra atividades econômicas e disputas políticas que vão muito além da conservação da natureza. Essa simplificação costuma orientar análises e debates, mas distorce a realidade das políticas voltadas à região, que variam e se contradizem dentro de um mesmo governo.
O artigo mostra que os presidentes brasileiros, de 1985 até hoje, constroem a Amazônia de maneiras distintas em seus discursos: às vezes como questão ambiental, outras como desafio de integração econômica, desenvolvimento social ou de soberania nacional. Essas escolhas não são casuais, mas dependem de onde o presidente fala (dentro ou fora da região, no Brasil ou em fóruns internacionais) e do contexto político de cada momento (como picos de desmatamento ou crises econômicas).
A trigésima COP (Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima), será realizada em novembro em Belém, no Pará. O foco será discutir a cooperação multilateral para resolver problemas climáticos, particularmente sobre a importância da Amazônia para a regulação do clima global. Reconhecer a importância da região para além de questões climáticas, nós acreditamos, é essencial para que quaisquer políticas públicas na região tenham os efeitos desejados. Ao revelar que não existe um único “problema amazônico”, mas sim múltiplas visões em disputa, a pesquisa contribui para um debate mais realista sobre o futuro da região e de seus habitantes.
Utilizando todos os 6.240 discursos presidenciais oficiais no Brasil entre 1985 e 2022, os autores identificaram 2.018 menções únicas à Amazônia. Em média, o tema aparece em 15% dos discursos, mas com oscilações significativas ao longo do tempo. A Amazônia ganha centralidade quando eventos de grande repercussão elevam sua urgência política: em 1989, após o assassinato de Chico Mendes; em 1992, na Conferência da ONU no Rio; em 2009, na COP-15 de Copenhague; e em 2019, com a crise das queimadas.
Os autores classificaram todas as referências em quatro tipos de visões da Amazônia como um problema usando aprendizado de máquina supervisionado: conservação ambiental, integração econômica, desenvolvimento social e soberania nacional. A integração econômica foi predominante de 1985 a 2009, sobretudo nos governos Cardoso, quando cresceu enquanto a conservação ambiental recuava. Com Lula, aumentaram a conservação e o desenvolvimento social; durante Dilma, esses dois superaram pela primeira vez visões econômicas. A partir de Temer e Bolsonaro, o padrão se inverte, com a integração econômica voltando a predominar e a soberania ganhando peso. Em paralelo, cresce o uso de combinações de visões, de 18% em 1985 para quase 30% em 2022, sinalizando que a Amazônia passou a ser representada como um objeto cada vez mais complexo.
Por fim, os autores modelam a probabilidade de cada visão com base na localização dos discursos, taxas anuais de desmatamento e inflação. Os resultados revelam que, independentemente do presidente ou da ideologia, há padrões consistentes de uso estratégico: fora da região amazônica e no exterior, a Amazônia aparece como problema ambiental; dentro da região, como integração econômica e social. Além disso,em momentos de alta do desmatamento, a Amazônia tende a ser construída como um problema econômico, e em tempos de baixa do desmatamento, as construções ambientais crescem.
Os autores concluem que os presidentes são estratégicos e consistentes na maneira que fazem política através de discursos. Quando falando longe da Amazônia, presidentes constroem o bioma como um problema de preservação ambiental, mas dentro, construções econômicas e sociais prevalecem. Essa relação é mediada por questões externas que determinam a urgência de problemas nacionais. Quando os problemas relacionados ao meio ambiente se tornam mais urgentes, como um alto aumento em desmatamento, os presidentes tendem a evitar o assunto e construir a Amazônia como uma questão de integração econômica. O mesmo pode ser dito sobre eventos ambientais de grande visibilidade, eles aumentam a proporção com que a Amazônia aparece em discursos presidenciais, mas não como ela é construída. Apesar disso, presidentes estão cada vez mais propensos a misturar essas construções e reconhecer as complexidades da Amazônia.
Essas conclusões sugerem que devemos ir além da suposição de que a Amazônia é uma questão única e começar a refletir como tanto o discurso como as políticas públicas refletem sua complexidade ambiental, social, econômica e soberana. Ao fazer isso, poderemos compreender melhor como essas visões são negociadas para compreender melhor por que, quando e como várias políticas sobrepostas direcionadas ao mesmo objeto são desenvolvidas. Concretamente, isso implica que, mesmo com a crise ambiental se tornando mais urgente, talvez não vejamos discursos ou políticas ambientais, econômicas e sociais coerentes e coesas em relação à Amazônia.
Políticos constroem problemas políticos e respondem às demandas do público empregando diferentes tipos de discurso em diferentes espaços e, ao mesmo tempo, adaptando-se ao longo do tempo conforme necessário. Eles podem, por exemplo, contornar problemas dependendo de onde e para quem falam, enquanto contam com diferentes contextos ou públicos para trazer questões à agenda política. Essas descobertas ampliam nosso conhecimento sobre como os políticos interagem com públicos diversos por meio do discurso, às vezes de maneiras inesperadas mas consequências para o desenvolvimento e implementação de políticas públicas.
5QUEM DEVERIA CONHECER SEUS RESULTADOS?
Nossos resultados destacam até que ponto as complexidades da Amazônia como um problema político se tornam salientes e quais são deixadas de lado ou ignoradas. Discursos são contraditórios, mas consistentes com uma estratégia de maximizar ganhos políticos.
Nesse contexto, consideramos nossos resultados importantes para representantes da sociedade civil,
movimentos sociais, e cidadãos brasileiros.
Compreender esse padrão ajuda esses atores a antecipar momentos de visibilidade política, prever mudanças de enquadramento conforme o contexto econômico ou diplomático e ajustar suas estratégias de incidência. Também permite cobrar coerência entre o discurso internacional — frequentemente voltado à conservação ambiental — e as ações efetivas dentro da Amazônia, onde prevalecem apelos ao desenvolvimento e à integração econômica. Ao reconhecer essas variações estratégicas, organizações podem aproveitar oportunidades de pressão em fóruns internacionais, condicionando apoios e recursos a compromissos reais de proteção ambiental e social na região.
Becker, B.K., 2005. Geopolítica da Amazônia. Estudos Avançados, 19 (April), 71–86. DOI: 10.1590/S0103-40142005000100005.
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Livio Silva-Muller é sociólogo fazendo pós-doutorado em Harvard. O trabalho dele investiga como Estados, mercados e organizações internacionais enfrentam desafios de descarbonização, redistribuição e democracia. Seu foco é o Sul Global, onde a tensão entre esses objetivos revela como as redes transnacionais, as estruturas institucionais e as elites econômicas podem tanto fortalecer quanto limitar a capacidade do Estado.
Henrique Sposito é cientista político e pesquisador de pós-doutorado em governança ambiental e desenvolvimento global na Wyss Academy for Nature da Universidade de Berna. Sua pesquisa utiliza técnicas avançadas de análise de texto, como aprendizado de máquina supervisionado, para investigar comparativamente diversos aspectos de discursos políticos e políticas ambientais na América Latina. Também desenvolve, contribui e mantém diversos pacotes em R que auxiliam pesquisadores na modelagem de redes sociais e conciliação de dados sobre governança global.