Taiguara: os ‘80 outubros’ do artista fora dos escaninhos que a Censura tentou calar
Quem é Taiguara? “Um cantor popular chamado lamê pela esquerda e subversivo pela direita”, disse uma vez o próprio, em fala destacada na videomontagem “Taiguara – Onde andará teu sabiá?” (2022) de Carlos Alberto Mattos.
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Isso, além de cantor, pianista de mão cheia, compositor (de letra e música, quase sempre sem parceiros) e um intempestivo talento que chamou a atenção com sucessos como “Hoje” e “Universo no teu corpo”, parte de uma obra gravada por vozes de diferentes vertentes, como Françoise Hardy (“Rêve”, versão em francês de “A transa”), Erasmo Carlos, Cauby Peixoto, Nasi e Agnaldo Timóteo.
Ao mesmo tempo, Taiguara foi um dos nomes mais atacados pela Censura, que, de 1970 a 1974, vetou 48 das 140 músicas submetidas por ele — com isso, completa-se o retrato cheio de contrastes do homem que teria chegado hoje aos 80 anos de idade, e sobre o qual a família e amigos tentam jogar alguma luz.
Para comemorar os “80 outubros” de Taiguara Chalar da Silva (Montevidéu, 9 de outubro de 1945 - São Paulo, 14 de fevereiro de 1996), o jornalista e pesquisador musical Marcello Pereira Borghí e a empresária artística Moína Lima (filha de Taiguara) lançam esta quinta-feira, no site https://www.youtube.com/taiguarachalardasilva, um clipe da música “Amor sem justiça” (feito por inteligência artificial a partir de fotos históricas, com direção de Diogo Brandão).
E esta quinta ainda, também pelo site, fazem, a partir das 20h30, a transmissão de um show com 23 artistas reinterpretando a obra do cantor e compositor. O pianista e arranjador Antonio Adolfo, Zeca Baleiro, Silvia Maria e Vânia Bastos são alguns dos nomes que participam da homenagem.
O cantor Taiguara (as esq.), ao lado de Marcos Valle, em 1968, em manifestação no Rio de Janeiro
Arquivo O GLOBO
Filho de pai gaúcho (o bandoneonista Ubirajara Silva) e mãe uruguaia (a cantora Olga Chalar, que mais tarde se tornaria a mãe de santo Olga da Vila Vintém), Taiguara passou infância no Rio, no bairro de Santa Teresa, exposto ao contraste social, entre a favela e os ricos encastelados em mansões.
Entre o samba da rua e o tango que ouvia em casa, forjou seu piano, estudado com afinco entre os 8 aos 12 anos. Em São Paulo, para estudar Direito, conheceu Chico Buarque e outros músicos que enfrentavam o regime com canções. Meteu-se, como eles, nos festivais e logo, cantando “Modinha” e “Helena, Helena, Helena” (que não eram suas composições), virou cantor romântico de sucesso — o que o começou a oprimir.
— Taiguara tinha um lado muito teatral, recitava Vinicius no show. E era muito talentoso, tocava um piano muito bom. Sua música era difícil, muito diferenciada, muito visceral em uma década que vinha da bossa nova. Ele chegava nos programas e ninguém queria deixá-lo cantar se acompanhando ao piano, ele ficava muito triste — recorda-se a cantora Claudette Soares, para quem ele compôs “Hoje” e com quem fez, em 1965, ao lado do Jongo Trio, o show “Primeiro Tempo 5 x 0”. — Taiguara começou a ficar muito revoltado e com toda razão, não queria mais cantar nos programas. Ele fazia aquela coisa meio agressiva, que incomodava nessa época de Censura.
Os cantores Taiguara e Claudette Soares, em 1966
Arquivo O GLOBO
Na entrada dos anos 1970, a imagem de galã de cabelos alisados e terninho deu lugar à do hippie de roupas extravagantes e cabelos revoltos, longos, com uma música que, embora ainda muito melódica, foi ficando mais elétrica. A Censura estava atenta e conseguiu impedir a gravação de um LP em 1974 e mandou recolher outro, “Imyra, Tayra, Ipy Taiguara” (1976), ambiciosa fusão de ritmos modernos (bossa, jazz, pop) com o regional (chamamé, guarânia) que ele gravou junto com músicos do quilate de Hermeto Pascoal e Wagner Tiso.
Curadora da obra de Taiguara desde 2014, a gravadora Kuarup reeditou há alguns anos o LP de 1976 e dois outros de inéditas, “Ele vive” e “Como Lima Barreto” (produzido por Zeca Baleiro). Falta agora o disco produzido no exílio na Inglaterra, do qual só se tem disponível a faixa “Let the children hear the music” (versão de “Que as crianças cantem livres”).
— Esse é uma incógnita, a gente não sabe o que pode ter acontecido sido realmente com ele, só existem alguns indícios. O que a gente sabe é que o Taiguara foi para a Inglaterra gravar em inglês as músicas do disco que teve 11 de seus 12 fonogramas proibidos em 1974 no Brasil — conta Marcello Pereira Borghí. — Ele chega a gravar esse disco, e consta que ele entregou as fitas para secretária do (pianista e arranjador francês) Michel Legrand no escritório da EMI em Londres. De lá para cá, não se sabe que fim levou esse material.
O cantor Taiguara, em 1972
Arquivo O GLOBO
Era o auge dos “13 outubros” de exílio que, segundo Marcello, Taiguara contava desde 1970 (quando desistiu de fazer alguns shows) até 1983, quando de fato voltou para os palcos no Brasil e gravou o LP “Canções de amor e liberdade”, levando adiante suas pesquisas de música indígena (e africana, feitas quando morou na Tanzânia). Em 1978, o cantor se casou com Eliane Potiguara, a primeira escritora indígena do Brasil. Tomou a filha de Eliane, Moíra, como sua e teve mais dois filhos com a mulher, Samora e Tajira. Foram tempos difíceis.
— A gente tinha que ficar fugindo o tempo todo, morou em São Paulo, em Recife... em 1983, a gente veio de vez para o Rio, mas aí começaram algumas perseguições. Quando voltava para casa, depois de uma viagem, a casa estava toda revirada, a porta arrombada, mensagens escritas na parede, bonecas decapitadas — conta Moína. — Eu não sei dizer quem era, mas meu pai falava em terrorismo, né? Ele dizia, “ah, os terroristas invadiram a nossa casa”, “os terroristas estão ligando de madrugada e fazendo ameaças”, “os terroristas estão colocando escuta”.
O cantor Taiguara, em 1992, em show no Fórum Global da Conferência da ONU sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente - Rio 92 (ECO 92)
Estefan Radovicz
De volta aos palcos, Taiguara ainda lançou mais um álbum, “Brasil Afri” (1994). E teria feito outro, também voltado para o repertório africano, que ele não teve tempo de gravar (e cujas demos foram usadas em “Ele vive”). O artista morreu vítima de uma metástase provocada por um câncer iniciado na bexiga.
— Papai tinha muita vontade de viver, mas chegou um momento em que ele não conseguia mais. No “Ele vive” você sente uma fraqueza na voz dele, ele canta com a respiração difícil. A gravação foi mais por registro — revela Moína, para quem o pai muitas vezes penou “simplesmente por ser Taiguara”. — Mesmo ali, ainda criança, eu reclamava que ele falava demais no show, que ele ficava discursando, fazendo aqueles protestos. Teve até a revolta de um contratante, querendo dar uma surra nele no final do show. Ao ver sua obra abafada, aquilo deu uma angustia muito grande. Então, nos shows, ele quis dividir com o público toda sua dor.
Claudette Soares se reencontrou com Taiguara nos anos 1990. Em conversas, que continuaram durante sua internação, surgiu o projeto de fazer um show cantando suas obras, que ele se dispôs a selecionar para o roteiro. A cantora faria o show acompanhada por uma orquestra de violoncelos e piano.
— Taiguara tinha visto essa formação na Alemanha, quando estava exilado. Nessa hora, uma lágrima rolou dos olhos dele, e ele disse: “Eu vou estar presente!” Inocentemente, falei: “Não, Taiguara, não quero que você se exponha se ainda estiver internado.” E ele: “Não fica preocupada, porque todo mundo vai me ver". E não falou mais nada — conta.
O show de Claudette Soares acabou acontecendo no Memorial da América Latina, em São Paulo, tempos depois da morte do compositor:
— No segundo dia, quando eu cantei “Hoje”, eu estiquei o braço esquerdo e vi a plateia toda levantando. Será que caiu alguma coisa em mim? Será que eu não botei a roupa certa? A orquestra começou e de repente vi a expressão do maestro: uma borboleta laranja enorme tinha pousado na minha mão. Juro por Deus!