Que jogo é esse: Como psicologia e neurociência explicam o erro do juiz e do VAR em São Paulo x Palmeiras
A CBF divulgou nesta semana o áudio do VAR de São Paulo x Palmeiras, polêmico jogo de domingo. Mais do que um registro técnico, o que se ouviu foi um retrato de como as convicções se formam — e de como o erro pode ser coletivo, não individual. No lance em questão, o são-paulino Tapia é atingido pelo palmeirense Allan dentro da área. Antes mesmo de qualquer checagem, o árbitro Ramon Abatti Abel reage: “Escorregou, escorregou!”. No VAR, todos os três juízes, inclusive o principal, Ilbert Estevam, confirmam: “É justamente isso que você narra”. A cena é simples e cheia de erros. O juiz define a narrativa antes da revisão; o VAR revisa para confirmar, não para entender. O que parece apenas um tropeço técnico, falta de preparo, pode se revelar como algo mais profundo: um reflexo humano.
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Assista: CBF divulga áudios do VAR de lances polêmicos em São Paulo x Palmeiras
Entre jogadores, na arquibancada, nas mesas de debate após o jogo e de bar durante a semana, o erro dos juízes e a convicção do pênalti chegava perto da unanimidade. Essa dicotomia me chamou a atenção: como quatro árbitros concordaram tão rápido em algo que o resto do mundo via de forma diferente com tanta certeza? Foi aí que resolvi investigar além das regras do jogo.
Conversei com especialistas em psicologia e neurociência, estudei o assunto para entender se o fenômeno era só desconhecimento da regra ou se poderia haver algo mais acontecendo.
Porque ali, dentro da cabine e do campo, não falhou apenas o conhecimento do jogo: falhou o funcionamento natural do cérebro, da mente social e do instinto de autoproteção. A ação dos árbitros no lance de Tapia e Allan é o espelho perfeito de como julgamos o mundo sob pressão: influenciados pela primeira impressão, pelo desejo de concordar e pelo medo de contrariar. Um pênalti ignorado, portanto, pode também ser um estudo de caso sobre como pensamos.
A psicologia da conformidade
O que pode ter acontecido na cabine do VAR, segundo um psicólogo de um clube de futebol que não quis se identificar, é o mesmo que acontece em qualquer grupo humano: a força da concordância. Em 1951, o psicólogo Solomon Asch, da Universidade de Swarthmore, conduziu um experimento que se tornou um clássico da psicologia social. Ele reuniu voluntários para uma tarefa simples: identificar, entre três linhas, qual tinha o mesmo comprimento de uma linha-modelo. O truque estava em que quase todos os participantes eram atores instruídos a errar. O resultado: três em cada quatro pessoas reais também erravam, apenas para não destoar do grupo.
Esse comportamento é conhecido como conformidade social. No VAR, ele ganha uma versão profissional: a voz do árbitro de campo tem peso simbólico e hierárquico. Discordar dele é desafiá-lo diante das câmeras, dos clubes e da CBF. E, como mostram outros estudos psicológicos da década seguinte, figuras de autoridade tendem a inibir o senso crítico. Assim, quando Ramon, apontado dentro e fora do grupo como um dos melhores da profissão no Brasil, afirma com convicção o que viu, os revisores, mesmo diante das imagens, se comportam como os participantes de Asch: preferem errar em grupo a causar conflito. O desejo de coesão vence o de precisão.
A neurociência do erro
É que os árbitros de vídeo não viram apenas o lance na tela, em câmera lenta: viram o que esperavam ver, não importa o ângulo. A neurociência explica isso pelo fenômeno da ancoragem cognitiva: o impulso automático de fixar uma interpretação inicial e depois usá-la como referência, mesmo diante de novas evidências. O psicólogo Daniel Kahneman, especialista em analisar julgamentos e tomadas de decisões, Prêmio Nobel de Economia e autor de "Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar", descreve o processo em dois modos: um “Sistema 1”, rápido, intuitivo e emocional, e um “Sistema 2”, lento, racional e analítico. No futebol, o Sistema 1 muitas vezes apita primeiro. Quando Ramon diz “escorregou”, ele não está apenas descrevendo o lance — está moldando a percepção dos que o escutam.
Uma vez emitida essa "âncora", o cérebro dos colegas do VAR tende a buscar provas que confirmem a versão inicial. É o que a neurociência chama de viés de confirmação. Discutir, rever ou discordar exige ativar o modo analítico, o tal Sistema 2, que consome mais energia e tempo. Por isso, sob pressão da decisão rápida, o caminho mais fácil (e inconsciente) é seguir a primeira impressão. O árbitro do replay, preso ao áudio do campo, passa a enxergar o lance com o mesmo filtro: o da narrativa pronta. O erro se torna previsível, quase inevitável.
Comportamento de rebanho
No futebol, o VAR é apresentado como a instância máxima de checagem mas, na prática, também é um ambiente de risco. A economia comportamental, área que uniu psicologia e economia nas pesquisas do já citado Daniel Kahneman e Richard Thaler (outro Prêmio Nobel), mostra que as pessoas tendem a escolher o caminho menos custoso emocionalmente, não o mais correto. No VAR, contrariar o árbitro de campo pode significar exposição, manchete, punição. Confirmá-lo é seguro. É o chamado comportamento de rebanho: seguir o julgamento predominante para evitar o desconforto da responsabilidade individual. Assim, o sistema que deveria revisar o erro acaba reforçando-o. O tribunal da imagem se torna o espelho do grupo — e a verdade, uma questão de conveniência coletiva.
O áudio divulgado pela CBF é, em essência, o som de um equívoco humano. Mostra que a arbitragem brasileira não sofre só com a falta de preparo técnico, mas também com os limites cognitivos que todos temos. O erro em São Paulo x Palmeiras nasce na palavra “escorregou”, mas floresce na mente de todos os que a ouviram. O futebol já tem tecnologia suficiente para revisar o lance. O que falta é aprender a revisar o próprio pensamento.
A ilusão de que o VAR eliminaria as polêmicas do futebol já virou pó. O caso de São Paulo x Palmeiras mostra que, por trás das câmeras e dos softwares de replay, há seres humanos, e as decisões humanas são tudo, menos matemáticas. A tecnologia pode multiplicar os ângulos, mas não apaga os vieses, as pressões e os atalhos mentais que moldam a forma como julgamos o mundo. E isso vale também para fora do campo: os mesmos mecanismos que levam árbitros a errar juntos fazem torcedores e dirigentes repetirem, com igual convicção, teorias sobre complôs e corrupções. Dar eco a opiniões absurdas, no fim das contas, é cair nas mesmas armadilhas comportamentais: também é comportamento de rebanho. Mas esse já é assunto para outra newsletter.
THALESPÉDIA
Data Fifa é bacana. A seleção mostrou evolução, jogou bem, mas continua sendo um amistoso contra a Coreia do Sul. No fim de uma temporada tão intensa, é difícil não sentir mais falta do futebol de clubes do que curtir o de seleções. Ainda mais quando o Brasileirão vive uma das disputas mais fortes da era dos pontos corridos — com dois dos cinco melhores desempenhos da história após 25 rodadas:
Flamengo de 2019 — 58 pontos
Cruzeiro de 2013 — 56 pontos
Atlético-MG de 2021 — 56 pontos
Palmeiras de 2025 — 55 pontos
Flamengo de 2025 — 55 pontos
Ou seja: o campeonato que temos hoje é daqueles que a gente vai lembrar por muito tempo.
AS COISAS MAIS LEGAIS PARA LER NO ESPORTE DO GLOBO NESTA SEMANA
Em um depoimento emocionante para a repórter Carol Knoploch, a maratonista Raquel Castanharo conta como vem enfrentando o tratamento contra o câncer sem deixar de lado o espírito esportivo. Ela fala dos efeitos da quimioterapia, do papel do exercício físico nesse processo e, com seu bom humor intacto, lembra: “Não treino fofo.”
Um texto bonito, corajoso e inspirador — sobre corrida, mas também sobre resistência.