De 'The chosen' a 'Rute e Boaz': Por que há tantos filmes e séries baseados na Bíblia neste momento?
No princípio eram os filmes bíblicos. Como acontece com filmes de qualquer gênero, sua popularidade subiu e desceu, mas agora, é uma enxurrada.
Alguns são o que você provavelmente espera: histórias para os fiéis. Filmes de animação sobre a vida de Jesus, como “O rei dos reis” e “Light of the World”, tiveram bom desempenho nas bilheterias este ano, enquanto “David” estreará pouco antes do Natal. Neste outono, a Netflix lançou “Rute e Boaz”, produzido pela Tyler Perry Studios — uma releitura moderna e sensual da história do Antigo Testamento. E o estrelado “Zero A.D.”, um thriller sobre Maria fugindo de Belém com o menino Jesus, está previsto para o próximo ano.
Séries de streaming como “House of David” e a extremamente popular “The Chosen” (ambas disponíveis na maioria das grandes plataformas) também conquistaram fãs com suas narrativas históricas ricas; uma série “José do Egito” foi encomendada recentemente. E em dezembro, Kevin Costner apresentará um especial da ABC explorando “a extraordinária jornada de Maria e José”.
É tentador atribuir essa abundância a uma única causa: uma guinada na era Trump em direção a um público religioso e conservador, por exemplo. Mas assumir essa posição exige usar antolhos. A verdade é: os filmes bíblicos estão mais diversos e estranhos do que nunca. Essas produções são apenas uma faceta do gênero. E quando observamos como a Bíblia tem aparecido no cinema ao longo do último século, fica claro que isso não é novidade.
Considere um conto bíblico recente nas telonas: “Segredos do deserto”, um filme de terror devidamente perturbador no qual Noah Jupe interpreta um Jesus adolescente, com Nicolas Cage e FKA twigs como José e Maria. O Jesus adolescente enfrenta Satanás e frustrações juvenis em uma história baseada no apócrifo Evangelho da Infância de Tomé (que não é reconhecido por nenhuma grande denominação cristã). “Segredos do deserto” certamente não foi feito para o público frequentador de igrejas.
Ou considere “O livro de Clarence”, do ano passado, um filme sobre Jesus estrelado por LaKeith Stanfield, ao mesmo tempo devoto e irreverente, com um protagonista ateu e maconheiro. Ou “Judas’ Gospel”, estrelado por Giancarlo Giannini, Rupert Everett e Abel Ferrara, que explora o lado de Judas Iscariotes e estreou no Festival de Locarno durante o verão. Ou os filmes futuros de Terrence Malick e Martin Scorsese, ambos homens religiosos que, mesmo assim, raramente pintam dentro das linhas.
Nenhum desses se encaixa no formato inspiracional e adequado para a família. Tampouco um filme como “Rute e Boaz”, que a Netflix divulgou com um vídeo insinuante de mulheres comentando sobre Tyler Lepley sem camisa, tatuado, consertando um telhado. Não são, por assim dizer, os filmes bíblicos da sua avó.
Ou são?
PARA QUEM CONHECE a história de Hollywood, o estado atual dos filmes bíblicos talvez soe familiar. Um espectador casual pode associar o gênero ao drama de 1956 de Cecil B. DeMille, “Os Dez Mandamentos”, ou ao épico de 1959 de William Wyler, “Ben-Hur”, ou ainda ao filme de 1965 de George Stevens, “A Maior História de Todos os Tempos”. Mas a história dos filmes bíblicos é surpreendentemente complexa, até controversa, e frequentemente revela algo sobre a cultura em que o filme foi feito.
Desde o momento em que o cinema foi inventado, ele foi usado para contar histórias bíblicas. Filmes feitos já em 1898 reproduziam os “mistérios da Paixão” que aconteciam anualmente por toda a Europa, criados inicialmente para ensinar a vida de Jesus.
Isso era esperado. Mas, curiosamente, também ganhamos o Código de Produção — as regras de autocensura de Hollywood, desenvolvidas por um padre e um editor religioso — em grande parte por causa de uma cena de nudez em um filme bíblico. Uma imperatriz interpretada por Claudette Colbert banhava-se nua em uma piscina de leite de jumenta no épico “O Sinal da Cruz” (1932), de DeMille, sobre os primeiros cristãos.
Na verdade, cenas picantes e filmes bíblicos costumavam andar de mãos dadas — mesmo depois que o Código foi adotado. Sim, alguns dos filmes bíblicos feitos durante a era do Código, que durou de 1934 a 1968, eram destinados a ser entretenimento inocente e moral. Filmes como “Os Dez Mandamentos” ou “A Túnica Sagrada” (1953) praticamente podiam servir como sermões, e ainda tinham bons atores, cenários belos e efeitos especiais legais.
Mas o público também vai ao cinema em busca de provocação, e alguns cineastas perceberam que a Bíblia lhes dava cobertura para mostrar ao público o que ele queria. Filmes picantes como “Sansão e Dalila” (1949), de DeMille, não seguravam nada. “Às vezes sou acusado de apimentar a Bíblia com grandes e generosas doses de sexo e violência”, escreveu o diretor em sua autobiografia. “Só posso me perguntar se meus acusadores já leram certas partes da Bíblia.”
Esses épicos caíram em desuso na metade do século nos Estados Unidos, conforme os estúdios enfrentavam mais competição da televisão e uma geração crescente os via como relíquias. Mas isso não significou o fim dos filmes com raízes bíblicas. A década de 1970 trouxe “The Late Great Planet Earth”, narrado por Orson Welles, que promovia interpretações conspiratórias e selvagens de eventos geopolíticos contemporâneos, mapeados sobre textos bíblicos proféticos. Houve também a série de terror “Thief in the Night”, que se tornou cult ao usar o Livro do Apocalipse como ponto de partida para sugerir que o sangrento fim do mundo estava próximo.
Nos anos 1980, um famoso filme bíblico foi parar no centro das guerras culturais da época. “A Última Tentação de Cristo”, de Scorsese, baseado em um romance que explora a vida de Jesus, foi alvo de intensas críticas e debates, e denunciado por organizações religiosas antes mesmo de ser exibido. A controvérsia culminou com o ataque incendiário a um cinema parisiense, resultando em vários feridos graves.
Alguns filmes se destacaram nos anos seguintes, como o sucesso de animação “O Príncipe do Egito”, mas “A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson, inaugurou uma nova era em 2004. Apesar de ser excepcionalmente violento e não estritamente fiel ao texto bíblico, tornou-se um megassucesso, em grande parte porque igrejas compraram ingressos em massa no fim de semana de estreia. Ele reinou como o filme de classificação etária R de maior bilheteria nos EUA e no Canadá por impressionantes 20 anos, sendo ultrapassado apenas em 2024 por “Deadpool & Wolverine”.
O fenômeno de “A Paixão” estabeleceu um modelo para o marketing de filmes direcionados aos fiéis. E inaugurou uma nova onda de superproduções bíblicas na era dos filmes de megabudget, como o caro fracasso “Êxodo: Deuses e Reis” (2014), de Ridley Scott. Em 2027, veremos se esses truques ainda funcionam, pois Gibson tem um filme em duas partes a caminho: “A Ressurreição de Cristo”.
A HISTÓRIA DOS FILMES BÍBLICOS é complexa. Eles nunca foram apenas contos inocentes para os frequentadores de igrejas e, muitas vezes, refletiram o clima de sua época, servindo a todo tipo de propósito. O que está acontecendo, então, com o influxo atual de filmes bíblicos?
Sem surpresa, em uma era de refilmagens, todas as velhas tendências estão ressurgindo. Em séries como “The Chosen”, é possível identificar o conservadorismo das superproduções bíblicas da era do Código, com seus grandes orçamentos e valores de produção. “Rute e Boaz” exibe a sensualidade bem-humorada daqueles filmes bíblicos que driblavam o Código. Alguns se inclinam para o terror, como os filmes apocalípticos dos anos 1970; outros apostam na irreverência e na comédia. O fluxo constante de animações infantis que recontam a vida de Jesus lembra aqueles primeiros dramas da Paixão filmados, criados para fins educativos. E não tenho dúvidas de que alguns dos filmes mais incomuns resultarão em seus próprios “cancelamentos” nas guerras culturais.
No passado, um filme bíblico (ou qualquer filme) poderia ter sido feito para alcançar um público amplo, mas hoje não existe mais o público. Existem apenas públicos, segmentados em seus próprios nichos. Há uma boa chance de que os espectadores de uma dessas categorias de filmes bíblicos nem saibam que os outros filmes existem — e nunca pensariam em assisti-los.
Mas isso dá aos contadores de histórias uma oportunidade de brincar, e a Bíblia — um texto antigo que significa muitas coisas para muitas pessoas e contém todos os tipos de narrativas — lhes oferece um vasto material com que trabalhar. Milhares de anos de história, e incontáveis leitores e tradutores, provaram que não existe uma única maneira de ler um texto bíblico. Há um público para cada tipo de filme bíblico. E sempre houve.