Memórias apagadas: ao menos 40 imóveis do Rio perdem proteção e vão abaixo
Eles já foram considerados símbolos da história dos bairros do Rio, mas por várias razões deixaram os registros dos órgãos de preservação e ficaram apenas na memória afetiva da população. Pelo menos 40 imóveis da cidade perderam a proteção contra demolições ou alterações de suas características originais nos últimos 25 anos. Esses bens foram destombados ou desprotegidos — quando podem ser reformados mantendo a fachada original — seja por decisões judiciais, leis ou decretos. O levantamento foi feito pelo GLOBO junto aos órgãos de preservação da União, do estado e do município, além do Tribunal de Justiça do Rio, do Supremo Tribunal Federal (STF), da Câmara Municipal e da Assembleia Legislativa do Rio.
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Na Justiça, foram 21 casos no período. Desses, 13 em Ipanema, quatro no Leblon e quatro na Tijuca. Na Zona Sul, o que provocou a maioria das retiradas da proteção foi a forma como que tramitaram dois decretos editados pelo ex-prefeito Cesar Maia que criaram as APACs do Leblon (2001) e de Ipanema (2003), declaradas parcialmente inconstitucionais pelo STF. A corte entendeu que a prefeitura podia criar áreas de preservação urbanística, mas excluiu os anexos que listavam bens tombados e preservados porque os moradores não foram ouvidos sobre essa intenção. Outras ações se basearam nessa jurisprudência. Procurado pelo GLOBO, o ex-prefeito não comentou.
Casa demolida
Um desses imóveis começou a ser demolido semana passada: a casa na Avenida Epitácio Pessoa com a Rua Joana Angélica, na Lagoa, que era tombada. Isso depois de uma briga na Justiça dos proprietários com a prefeitura que levou 18 anos. Neste caso, uma perícia anexada ao processo apresentou a tese de que a construção não tinha valor histórico para o bairro.
O rol de excluídos por decisão judicial tem ainda quatro imóveis que foram declarados preservados pelo decreto da APAC de Ipanema. Localizados na Rua Almirante Saddock de Sá, eram conhecidos como as "casas assombradas", pelo péssimo estado de conservação. Nos terrenos onde estavam três delas, vai ser erguido um condomínio como contrapartida por investimentos no retrofit e na construção de residenciais na área do Reviver Centro. O bônus urbanístico de lá veio da primeira licença emitida pela prefeitura dentro do programa — um prédio com 119 apartamentos na Rua do Acre.
— As casas da Saddock de Sá pertenciam a duas famílias que se beneficiaram da decisão do STF. Elas estavam em péssimo estado, sem condições de recuperação. A vizinhança aprovou o novo destino dos terrenos — diz o dono da Engeziler, Alberto Zilberman.
Victor Trulli, diretor da Administradora Nacional, especializada na gestão de imóveis, avalia os destombamentos pelo ponto de vista dos investidores:
— Entendo que tombamentos podem ser benéficos. Mas é preciso ter segurança jurídica dos benefícios que esse tipo de recurso trará a longo prazo, não apenas de imediato. Há imóveis importantes e muitos são mantidos e se integram a novos projetos, inclusive na Zona Sul.
Se não há lei específica, é possível desproteger imóveis por decreto, alegando o interesse público em prol do desenvolvimento da cidade. Só este ano, o prefeito Eduardo Paes destombou três. O mais recente, em outubro, foi a sede da Associação Atlética Light (Grajaú), que estava fechada desde julho. O imóvel foi vendido para a construtora Cyrela, que deu entrada na prefeitura em um pedido de licenciamento de um condomínio residencial. Curiosamente, foi o próprio Paes quem havia decretado o tombamento do imóvel em 2016, com o argumento de que era espaço importante para atividades esportivas da comunidade.
Os outros foram a sede da empresa Sotreq, projeto modernista do escritório dos Irmãos Roberto na Avenida Brasil, na altura de Bonsucesso, e a antiga sede da distribuidora Ipiranga, na Rua Francisco Eugênio, onde está em construção o primeiro residencial do programa Porto Maravilha em São Cristóvão. O secretário de Desenvolvimento Urbano e Licenciamento, Gustavo Guerrante, que analisou os processos, explicou as opções pelos destombamentos:
— As atividades no clube já eram bastante reduzidas antes de fechar. A realidade ali mudou. A Sotreq precisava expandir suas instalações e explicou que, se não houvesse o destombamento, perderíamos uma das grandes empresas de fornecimento de equipamentos da cidade para Macaé. Por fim, o prédio de São Cristóvão, de arquitetura brutalista, não tinha como ser convertido para residencial. Tinha grandes lajes corporativas, que dificultavam retrofits.
Ex-secretária municipal de Urbanismo, Andrea Redondo conta que, quando integrava o Conselho municipal de Patrimônio Cultural, durante uma das gestões do ex-prefeito Cesar Maia, participou da votação de um destombamento parcial das antigas oficinas de trens do Engenho de Dentro para viabilizar a construção do Estádio Olímpico inaugurado para o Pan de 2007.
— Todos os destombamentos seguem interesses políticos e econômicos. Isso aconteceu no Engenhão. Nas APACs de Ipanema e Leblon, houve tombamentos provisórios para que órgãos de preservação fizessem estudos mais detalhados sobre esses lugares antes que fossem demolidos por pressão do mercado — diz Andrea. — Mas absurdos permitidos no passado como derrubar o Palácio Monroe (Cinelândia) não seriam tolerados hoje.
Análise individualizada
Presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio (CAU-RJ), Sydnei Menezes alerta: as propostas de destombamentos precisam ser avaliadas caso a caso.
— O foco do tombamento é preservar bens que têm valor histórico, cultural e arquitetônico. Mas com o tempo, esse instrumento passa a ser usado para evitar fechamento de negócios ou o crescimento de regiões da cidade — afirma.
A lista tem curiosidades. Na Rua Henrique Dumont, a Justiça destombou uma casa onde hoje funciona uma pizzaria. O imóvel foi mantido, mas com alterações internas e na fachada. O prédio exibe hoje uma cor ocre, seguindo o padrão da rede. Ao ser tombada, a fachada tinha um tom rosa escuro. Na Rua Barão da Torre, donos de um prédio brigaram oito anos na Justiça com a prefeitura para retirar a proteção urbanística, alegando a necessidade de alterar o telhado por questões técnicas.
Sede do América F.C, na Rua Campos Sales, na Tijuca
Berg Silva / Agência O Globo
América na torcida
Em 2012, o prefeito Eduardo Paes tombou a sede do América, na Tijuca, que poderia ser leiloada. Anos depois, seu sucessor, Marcelo Crivella, destombou o espaço. No local deve abrir, em 2028, o Shopping Parque América, com um andar para o clube.
América na torcida
Em 2012, o prefeito Eduardo Paes tombou a sede do América, na Tijuca, que poderia ser leiloada. Anos depois, seu sucessor, Marcelo Crivella, destombou o espaço. No local deve abrir, em 2028, o Shopping Parque América, com um andar para o clube.
Sambódromo ampliado
Em 2012, a fábrica de uma cervejaria desativada foi destombada pela Alerj para permitir a ampliação do Sambódromo de 60 mil para 72 mil lugares.
Obra em terreno do antigo Canecão seguem para criação de complexo multicultural. Imóvel da casa de show foi demolido
Márcia Foletto / Agência O Globo
À espera do novo Canecão
Em 2009, a Alerj aprovou o tombamento do Canecão, em Botafogo, uma tentativa de preservá-lo. Mas a casa fechou de vez em 2010, mergulhada em crise financeira. O imóvel foi destombado em 2019 e demolida este ano; nova casa de shows deve abrir ali em 2027.
História no caminho
Em 2010, Paes destombou dez imóveis do Caminho Real, no bairro do Campinho, que estavam no traçado do BRT Transcarioca.
Terreno no Buraco do Lume vai dar lugar a prédio com mais de 700 apartamentos, o maior do Reviver Centro
Márcia Foletto / Agência O Globo
Buraco do Lume
Em 2022, a Alerj aprovou o destombamento do terreno conhecido como Buraco do Lume, junto à Praça Mário Lago, no Centro. Atual proprietária da área, a Patrimar planeja construir um residencial com 720 unidades no local.
Da boa comida ao concreto
O tombamento do restaurante Antiquarius, em Ipanema, não impediu que a casa fechasse em 2018. Destombado, o imóvel foi demolido e deu lugar a um prédio residencial.
Espaço da Aldeia Maracanã segue abandonado pelo poder público
Guito Moreto
Aldeia Maracanã
Antiga sede do Museu do Índio, chegou a ser destombada em 2013 durante os preparativos para a Copa do Mundo de 2014. A previsão era que o espaço fosse usado no contexto do evento. Diante da reação popular, a prefeitura voltou atrás e hoje está em ruínas.
Templos sem proteção
A Câmara Municipal do Rio decidiu por lei destombar duas igrejas em ruínas: a de São Pedro Apóstolo do Encantado e a da Irmandade de São Pedro da Gamboa.