Presidente de clube de tiro, dono de loja de armas, armeiro: as conexões por trás do arsenal do CV no Complexo do Alemão
Em abril de 2001, o paranaense César Sinigalha Alvares, atirador certificado pelo Exército e então presidente do Clube de Tiro de Apucarana, em seu estado natal, foi preso com uma carga de armamentos quando chegava ao Rio em um ônibus. Uma abordagem de rotina da Polícia Rodoviária Federal (PRF) encontrou, em meio à sua bagagem, um fuzil, uma metralhadora, 12 granadas e vários pacotes com munição — que seriam entregues a traficantes do Comando Vermelho (CV).
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A ocorrência marca o início de uma relação de mais de duas décadas de Alvares com a maior facção do tráfico do estado: no início, ele atuava como fornecedor da facção, trazendo armamento proveniente do Paraguai; depois, o paranaense se mudou para o Rio e, segundo uma investigação da Polícia Civil, tornou-se um dos principais armeiros do CV, responsável pela manutenção de parte das armas apreendidas pelas forças de segurança no Complexo do Alemão. A apuração também expõe outras conexões com armeiros, donos de lojas de material bélico e clubes de tiro que ajudam a manter o arsenal dos traficantes do conjunto de favelas.
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Depois da prisão de 2001, Alvares conseguiu sair da cadeia e acabou preso novamente em outras quatro ocasiões — a mais recente durante a Operação Plexo, da 60ª DP (Campos Elíseos) em parceria com o Ministério Público do Rio (MPRJ), em maio. Segundo o relatório da investigação, Alvares assumiu, no ano passado, a tarefa de realizar a manutenção de armas de fogo de grosso calibre que integram o acervo de Jonathan Ricardo de Lima Medeiros, o Dom, um dos principais chefes do CV na Paraíba, que atualmente comanda seus subordinados no estado nordestino à distância, escondido no Complexo do Alemão.
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De acordo com a polícia, vídeos e diálogos extraídos da conta de WhatsApp do armeiro mostram “a importância de sua especialidade em serviços de reparo, satisfazendo os pedidos de uma gama de traficantes que possuem acervo próprio, tornando-se peça principal na manutenção de todo o armamento utilizado”.
Em 2006, quando a Polícia Federal apreendeu um arsenal na chácara onde vivia com a esposa, na cidade de Cambé, no Paraná, ele disse, em depoimento à Justiça que havia dedicado toda a sua vida à atividade de armeiro: “A minha vida inteira, de quinze anos pra cá, foi dedicada a clube de tiro e armeiro. Já fui atirador, era autorizado pelo Exército a dar curso de tiro. Então, para a minha família toda, para quem era meu amigo, ver uma pessoa beber um copo de água é ver eu mexer com arma. A minha vida é isso. Todo mundo sabe que eu sempre fiz isso — Polícia Federal, Polícia Civil, Polícia Militar...”
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A Operação Plexo também descortinou os laços entre outros dois CACs e outro traficante que faz parte das fileiras do CV no Alemão: Luiz Carlos Bandeira Rodrigues, o Da Roça, criminoso do CV oriundo de Rondônia que ascendeu nos últimos anos na hierarquia do grupo ao participar da tomada de favelas na Grande Jacarepaguá. Em uma conta de WhatsApp, a polícia encontrou uma planilha que revela gastos de mais de R$ 5 milhões em apenas um mês com a compra de armas e munição.
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Um dos fornecedores — para quem Da Roça teria pago R$ 1,6 milhão por cartuchos de diferentes calibres — é identificado como “Bazzana”. Segundo a Polícia Civil, trata-se de Eduardo Bazzana, um atirador esportivo que, até ser preso em maio passado, presidia o Clube Americanense de Tiro, com mais de sete mil associados em todo o estado de São Paulo, e era dono de duas lojas de armas e munição registradas no Exército.
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Ao se debruçar sobre as movimentações financeiras de Da Roça, a polícia encontrou uma série de pagamentos feitos a outro atirador esportivo certificado pelo Exército, sócio de uma loja de armas com sede na Avenida Brigadeiro Faria Lima, na capital paulista. Nos arquivos do traficante, foram encontrados tanto depósitos fracionados à loja quanto ao dono. De acordo com o relatório de investigação, o atirador “recebeu depósitos fracionados em sua conta bancária, datados do mesmo dia, indicando querer ocultar movimentações financeiras grandiosas decorrentes da venda de materiais bélicos”. O homem não foi denunciado pelo MPRJ.
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À Justiça, a defesa de César Alvares afirmou que seu cliente é inocente e que “a denúncia se baseia apenas em ilações e presunções, carecendo de justa causa concreta”. Já a defesa de Eduardo Bazzana alegou que “a partir de 1º de janeiro de 2023, está havendo uma verdadeira caça às bruxas para quem atua nesta área, seja ele Atirador Desportivo, Caçador, Colecionador ou dono de loja ou clubes, como é o caso do Sr. Eduardo Bazzana (...) o único crime que ele cometeu nesta vida toda foi pagar seus impostos e não ser reconhecido como empresário digno e honesto que sempre foi”. O GLOBO não conseguiu contato com os advogados.
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