Com 81,9% vivendo em áreas acessíveis apenas a pé, de bicicleta ou de moto, Rocinha tenta driblar a deficiência no ir e vir
“Você acha que mudança é só chamar caminhão? Aqui é diferente, filhão. Os caras colocam sofá nas costas como se fosse mochila escolar”, diz o criador de conteúdo digital Ruan Juliet, num vídeo publicado nas redes sociais. Morador da Rocinha, na Zona Sul do Rio, o jovem de 21 anos mostra o cotidiano da maior comunidade do país, segundo o Censo 2022 do IBGE. Ali, 81,9% dos moradores vivem em áreas acessíveis apenas a pé, de bicicleta ou de moto — um retrato da precariedade da mobilidade. O percentual é o dobro da média das favelas do município do Rio (40,6%) e quatro vezes o registrado nas comunidades brasileiras em geral (19,2%).
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Diante da imposição dessa realidade, alternativas são criadas para enfrentar o dia a dia nos becos estreitos e no sobe e desce das escadarias tortuosas e irregulares da Rocinha. Centenas de jovens, por exemplo, passaram a fazer o que chamam de “frete humano”, carregando mudanças, eletrodomésticos e material de obras; e foram criados postos nas ruas principais para receber mercadorias e correspondências. Criatividade não falta: há deficiente que se desloca de skate e marceneiro que improvisou o “samuzinho”, uma cadeira que permite transportar quem tem dificuldade de locomoção. Contar com a ajuda de parentes e criar uma rede de apoio na vizinhança também é fundamental para que pessoas com mobilidade reduzida consigam sair de casa.
— A Rocinha cresceu absurdamente, mas não tem corrimão, não tem rampa, os lixões ocupam as calçadas, os carros param de qualquer jeito. Não há política pública— resume Ruan Juliet, batizado Ruan Gabriel da Silva Nascimento, que tem mais de 730 mil seguidores no Instagram.
Michael Batista Tavares, conhecido como Mick, teve paralisia infantil e hoje se desloca nas ruas, vielas e escadarias com um skate
Márcia Foletto
Serviços afetados
Uma situação que respinga nos serviços públicos. A Light, por exemplo, afirma que a dificuldade de acesso às comunidades por vezes provoca demora no atendimento. Em um vídeo gravado há algum tempo na Rocinha, para transportar pelas vielas um transformador que pesa cerca de 500 quilos, foi necessária a ajuda de moradores da comunidade. Só com essa parceria é que um equipamento danificado pelo excesso de “gatos” de energia pôde ser substituído.
Pelo Censo, apenas 14,9% dos habitantes da Rocinha vivem em ruas onde passam caminhões e ônibus. Conhecido como Peso Pesado, o piauiense Fabrício Pereira de Carvalho, de 24 anos, como outros rapazes do “frete humano”, fica nos pontos onde caminhões de entrega descarregam para esperar pelos fregueses. Ele é contratado ainda para fazer mudanças, que podem custar até R$ 500. Tudo vai depender da dificuldade.
—. Já tive que arrancar janela para geladeira entrar. Cama-baú ninguém compra, porque não entra nas casas, mesmo desmontando. Alguns eletrodomésticos só sobem por corda; não passam pelos becos — conta Fabrício, que cita o que de mais pesado transportou recentemente: — Subi um amarrado de ferro para viga e coluna, com mais de cem quilos. Outro dia, levei 20 sacos de cimento, cada um de 50 quilos. Não de uma vez só, claro.
Ruan Juliet acrescenta:
— Aqui no morro é na força bruta, na raça, no talentinho.
Com o frete, Peso Pesado consegue o suficiente para pagar suas despesas, incluindo o aluguel de um quitinete (R$ 450) no alto da favela e o plano básico do Carteiro Amigo (R$ 14 por mês, mais R$ 5 por mercadoria que busca no local). Como a maioria das casas não tem numeração, moradores direcionam produtos e correspondência para estabelecimentos, como o Carteiro Amigo e o Correio 199. Além do plano básico, são oferecidos os serviços Amigo e Express, que custam R$ 22 e R$ 33, respectivamente, dando direito a receber gratuitamente cinco ou dez encomendas por mês.
— Começamos na Rocinha, chegamos a Rio das Pedras e viramos uma transportadora, que atua em todo o Rio de Janeiro — explica o CEO Carlos Pedro da Silva Júnior, ex-morador da comunidade. — Na Rocinha, entregamos em domicílio, mas 80% retiram as mercadorias na loja, onde recebemos, em média, 580 entregas e 96 cartas e revistas por dia.
O movimento na sede do Carteiro Amigo, na Estrada da Gávea
Divulgação/Carteiro Amigo
‘Eficiência na deficiência’
Entre os mais de 72 mil moradores da Rocinha, o vendedor ambulante Michael Batista Tavares, o Mick, de 53 anos, não se queixa abater, a despeito das adversidades. Paralítico devido a poliomielite contraída na infância, ele faz do skate e do chinelo em uma das mãos aliados para vencer as escadarias do morro e chegar na Cachopa, localidade onde mora. Conhecido na comunidade, com as motos que circulam na favela, ele também pega carona, sendo puxado sentado no skate.
— A acessibilidade só piora na Rocinha. Cada vez têm mais casas na favela. Como estou mais velho, subir e descer escadas ficou mais difícil. Tenho que fazer isso mais devagar do que antes. Mas faço da minha deficiência minha eficiência. Não coloco limitações. E conto com a ajuda de pessoas — diz Mick
E os que têm dificuldades de locomoção encontram na falta de calçadas mais um empecilho. Só 12,1% dos endereços da comunidade possuem passeio na porta. Um índice que é, em média, de 41,2% nas favelas da cidade.
Pai e avô de jovem com paralisia cerebral descem escadaria carregando a moça numa cadeira de rodas
Divulgação/Arquivo pessoal
Para transportar a neta numa cadeira de rodas, Mariza Mello, de 64 anos, precisa da colaboração do marido e do pai de Jennyfer, de 19 anos, que nasceu com paralisia cerebral. Religiosamente, de segunda a quinta-feira, os dois descem e sobem as dezenas de degraus da Rua 3 até a Estrada da Gávea, com a cadeira de rodas, para que a jovem possa embarcar e desembarcar da van da escola.
— Antes, a van parava embaixo, na Estrada da Gávea. Tínhamos que descer até lá, indo pelo meio da rua por causa dos lixões e da falta de calçadas — recorda Mariza. — A Jennyfer é nosso tesouro. Ela responde com o olhar. Sabemos que gosta de passear na praia. Mesmo com dificuldade, sempre que a gente pode, levamos. Não queremos que fique apenas em casa.
Cadeiras ‘samuzinho’
Marceneiro, há alguns anos Pedro Leôncio de Souza adaptou uma cadeira: usando pedaços de madeira, improvisou braços compridos dos dois lados, que permitem que duas pessoas transportem um cadeirante. Surgiu logo o apelido: “samuzinho”. No início, a iniciativa era para ajudar vizinhos do alto da Rua 1 e arredores, que sequer conseguem ir ao médico, porque não podem descer escadaria e rampas irregulares dos becos.
A ideia foi adiante. Ele fez mais cadeiras e recebeu a doação de uma maca, como a dos Bombeiros, para casos de emergência. Hoje, aos 94 anos, usa uma de três cadeiras disponíveis quando precisa sair de casa.
— Queríamos ter mais cadeiras e macas para ajudar mais pessoas. Mas precisamos de parcerias para investir nesse projeto, que é muito importante para nossa comunidade, onde a circulação é tão difícil — afirma Leda Costa, filha do idoso.
O marceneiro Pedro Leôncio de Souza na cadeira “samuzinho”, que criou
Divulgação/Arquivo pessoal
‘Projeto que não pare’
Para o presidente do Instituto Arquitetos da Favela e morador do Morro da Providencia, arquiteto e urbanista Fernando Pereira, a questão da mobilidade na Rocinha chegou ao nível em que se encontra por falta de continuidade nos programas, com a troca de prefeitos e governadores.
— A favela é um grande organismo vivo. Se o poder público não trabalhar em conjunto com as entidades de arquitetura e os projetos locais, nada dará certo. O morador precisa de um teto e constrói, sobrando menos espaço para a mobilidade. Isso também impacta diretamente na saúde de quem vive nesse espaço. O projeto tem que ser bem pensado, bem estruturado, e que não pare — destaca.
O presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio (CAU-RJ), Sydnei Menezes, ressalta que a Rocinha tem solução. Ele lembra que “há um projeto do governo do estado, elaborado pelo arquiteto e urbanista Luiz Carlos Toledo, que acaba de completar 20 anos, sem sair do papel”.
— O projeto prevê um plano detalhado de mobilidade com implantação de vias para veículos, requalificação e organização de vielas, além da introdução de um plano inclinado. Para avançar, basta elaborar um edital de projetos e obras, assegurar os recursos públicos e iniciar a implantação.