Entrevista: COPs vão focar em remendos tecnológicos, mas nada garante que darão certo, diz historiador
Historiador diz que sistema da ONU se tornou anacrônico e que não dará conta de deter o aquecimento global. Para ele, ecossistemas como Amazônia e Himalaia demandam gestão multilateral regional Com a saída dos EUA da convenção do clima da ONU e o Acordo de Paris ameaçado, os países precisam pensar em soluções regionais. Essa é a opinião do historiador indiano Dipesh Chakrabarty, conhecido na academia por seus trabalhos sobre colonialismo. O professor da Universidade de Chicago lançou em maio no Brasil a tradução de seu livro “O Global e O Planetário” (Ubu Editora, 352 págs., R$ 99), em que expõe as duas visões de mundo antagônicas que embasam as negociações climáticas. Em entrevista ao GLOBO, ele explica por que considera que o sistema das Nações Unidas criado para lidar com a crise do clima se tornou ultrapassado e defende que áreas críticas como a Amazônia e o Himalaia adotem soluções regionais.
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O sr. argumenta em seu livro que a maneira “global” de entender o mundo, centrada nos humanos, é diferente do entendimento “planetário”, em que as pessoas são apenas parte da engrenagem. Os diplomatas nas conferências do clima estão formatando o problema da maneira errada?
Não sei se existe um jeito certo e um jeito errado, mas se os cientistas do IPCC (painel do clima da ONU) dizem que temos de descarbonizar e ter zero emissões até 2050, esse é um calendário para todas as nações, planetário. Acontece que as nações argumentam em favor de seus próprios interesses e querem um outro tipo de compromisso. Agora, com os EUA e Donald Trump saindo das negociações climáticas, os processos da COP serão ainda mais difíceis.
Por quê?
No mundo corporativo americano, já se fala em “realismo climático”, que se aceitaria um aquecimento de 3°C em média, muito acima dos níveis de 1,5°C ou 2°C da meta do acordo do clima. Com 3°C, o mundo seria muito diferente. Cidades ficariam submersas. Minha cidade natal, Calcutá, na Índia, estaria em risco, e muitas cidades costeiras teriam problemas. O IPCC, como órgão, tenta adotar uma perspectiva “planetária”, porque é embasado na ciência, além de negociação política. Mas os processos na COP são quase puramente políticos.
Qual é a extensão do dano da saída dos EUA do Acordo de Paris?
Com a grande potência que são os EUA desistindo de liderar o mundo na questão climática, isso permitirá que outros atores rompam com as regras e se concentrem só no crescimento econômico, o que é lamentável. Índia e China sempre defenderam mais tempo para a descarbonização dentro do acordo. A Índia queria mais 20 anos para se descarbonizar por volta de 2070. A China queria mais 10 anos, para atingir a meta só em 2060. O foco da COP será em coisas como captura e armazenamento de carbono no subsolo ou projetos de geoengenharia para barrar o sol, coisas assim. As COPs se concentrarão mais nesses remendos tecnológicos, mas não há garantia de que esses remendos darão certo. Estamos perdendo o foco na questão planetária.
Já há vários anos que cientistas apontam que o modelo de desenvolvimento dos países está muito ancorado em crescimento do PIB e não leva os recursos naturais em conta. Isso explica o fracasso das COPs?
Há muitas razões. Uma delas está no pensamento econômico. Após o fim da Segunda Guerra Mundial e durante a Guerra Fria, a ideologia americana de crescimento e abundância estabeleceu um modelo de pensamento que não levou em consideração a finitude dos recursos materiais. O relatório do Clube de Roma, em 1972, argumentou que não se pode ter crescimento infinito em um planeta finito. Mas mesmo depois disso, houve economistas, incluindo dois ganhadores do Prêmio Nobel, Robert Solow e William Nordhaus, argumentando que a natureza finita dos recursos materiais era apenas uma concepção relativa. Era relativa ao custo. A ideia era que, se você pode pagar mais, sempre há mais. Mesmo que você fique sem gasolina nos Estados Unidos, há petróleo do Oriente Médio e há petróleo em outras partes do mundo, certo? E a concepção era relativa também à tecnologia, para a qual você pode criar substitutos. Esses argumentos fizeram com que a questão da finitude dos recursos materiais parecesse menos importante, mas não era. No final do século passado, outros economistas trabalhavam na ideia de que o desenvolvimento humano vai além do crescimento econômico: é qualidade de vida, educação, saúde... e longevidade. Cada vez mais economistas têm dito agora que a finitude dos recursos deve ser levada em consideração.
Os países ainda não conseguiram precificar o valor da biodiversidade em negociações internacionais. Ela é um ativo moral, mais do que um ativo econômico?
A biodiversidade é uma questão moral, mas também é uma questão de sobrevivência a longo prazo. A biodiversidade é o que mantém a vida em andamento. Veja o caso da agricultura industrial que temos agora. Estamos em uma situação em que, se não usarmos fertilizantes, 40% dos humanos ficarão sem comida. Mas com fertilizantes, você usa pesticidas, e pesticidas causam mortalidade em massa de insetos, incluindo aqueles que você não quer matar. Há uma crise na América do Norte com as abelhas. Sem os insetos polinizando, você simplesmente não consegue cultivar alimentos em escala. Se você não mantiver a biodiversidade a longo prazo, isso é um problema para nós. Não é apenas uma questão moral, ela deve ser uma questão consciente de interesse próprio. E isso significa que precisamos de liderança, de leis de longo prazo e de economistas capazes de precificar a biodiversidade.
O sistema das Nações Unidas, que abriga a Convenção do Clima, tem se mostrado incapaz de fazer valer aquilo que foi assinado no Acordo de Paris. É preciso consertar a ONU para avançar, ou buscar a solução por outros meios?
Consertar o sistema da ONU levará muito tempo. O sistema funciona para ajudar as nações poderosas. Ele foi criado pelos EUA com seus aliados e os soviéticos para que eles administrassem o mundo. E funcionou para manter o mundo relativamente pacífico por sete décadas. Mas ele só funcionou porque não era preciso estabelecer um prazo final para as coisas. O problema climático, por outro lado, exige que a economia global se descarbonize até um determinado prazo. Portanto, é um sistema muito diferente. A questão é que não se pode mudar da ONU para a governança global em linha reta, porque o sistema da ONU tem muitos interesses postos em jogo. Foi criado para manter um status quo. O que podemos fazer é trabalhar regionalmente com nações multilaterais, não com todas as nações.
O que seria essa abordagem regional?
Posso citar dois exemplos: um na Floresta Amazônica e outro nas geleiras do Himalaia. As geleiras do Himalaia dão origem a oito ou nove rios que abastecem países do Paquistão ao Vietnã. A região se tornou a cadeia de montanhas mais militarizada do mundo, viu crescer a hostilidade entre a Índia e a China e, posteriormente, entre a Índia e o Paquistão. Cada um militarizou a sua parte das montanhas, construindo pistas de pouso, estradas para o Exército. E todos os anos há avalanches. Eles estão destruindo as montanhas. Assim como no caso da Amazônia, não existe um tratado multilateral sobre como gerir as florestas. Esse me parece ser o caso para gerir as questões em nível regional, ainda que algumas dessas questões sejam, na verdade, planetárias. A Floresta Amazônica desempenha papel importante para todo o planeta, e o Himalaia também. Venho defendendo que todas essas nações que se beneficiam dos rios do Himalaia deveriam desenvolver um órgão que garanta a saúde das geleiras. Isso é difícil de fazer, porque significa que China, Índia e Paquistão terão que ceder alguma autoridade a esse órgão. Mas não acho que seja totalmente utópico.
Existe um entusiasmo no Brasil hoje com a capacidade de o país oferecer uma perspectiva diferente sobre o problema da crise do clima na COP30. Que contribuição os brasileiros podem dar para o problema?
Para responder a isso, gostaria de mencionar um amigo: o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro. O trabalho dele sobre a visão de mundo dos indígenas e sobre aquilo que ele chama de “multinaturalismo” é maravilhoso. Ele mostra, filosoficamente, que outros tipos de mundo são possíveis. Isso não significa que nós devamos ampliar o modo de vida dos indígenas para alimentar 8 bilhões ou 10 bilhões de pessoas no planeta. Isso talvez nem seja possível. Mas o trabalho dele, na verdade, documenta que os seres humanos podem viver de outras maneiras e enxergar a natureza de maneira diferente. A nossa tarefa prática é transformar esses mundos possíveis em mundos viáveis.